segunda-feira, 25 de maio de 2009

O ciclo de um Inquérito Policial e seu desafio no Estado Democrático de Direito

O Ciclo de um Inquérito Policial e seu Desafio no Estado Democrático de Direito

Por Sebastiao Uchoa


É fato normativo a tramitação de inquérito policial, peça precípua de produção da atividade estatal inerente às Polícias Judiciária Federal e Civil, ressalvados os casos de Polícia Judiciária Militar nas hipóteses limitadas e elencadas em lei, respectivamente.

Como toda expressão estatal tem limites de caráter formal e material, onde, na ausência de um ou dos dois, pode o órgão para quem destinatariamente e de forma mediata, são encaminhados os Procedimentos Policiais - o Ministério Público - requerer à Autoridade Judiciária pelo arquivamento ou devolução para a Delegacia de origem a fim de se realizar novas diligências imprescindíveis à propositura da Ação Penal cabível à espécie.

Há diante de uma análise superficial do contexto jurídico-formal, pontos que, sob os limites à ação estatal na primeira fase da persecução criminal, que se tornam quase imperiosos para suas consecuções, sobretudo no denominado Estado Democrático de Direito contemporâneo, a existência de freios e contrapesos pertinentes. Onde, é possível interpretar, até mesmo expressões de garantias individuais para que juízos de valoração precipitados diante dos fatos criminosos sob investigação ou com suspeitas de autorias, não venham à tona e promovam acusações levianas ou expositoras a todos que estejam sob diligências investigatórias policiais, principalmente no tocante à própria garantia do princípio constitucional da presunção da inocência: pedra fundamental para qualquer procedimento ou processo estatal, ante as averiguações sob a égide da investigação policial a cargo das Polícias Judiciárias brasileira, principalmente pela inexistência de previsão legal correlata ao respeito pelo contraditório em sede inquisitorial.

O nascedouro de um Procedimento Policial, exceto nos casos de Autuação de Prisão em Flagrante Delito, como sabemos, dar-se mediante expedição de Portaria por parte da Autoridade Policial que deverá presidir as investigações, onde, nela constará uma narrativa em substrato do fato criminoso acontecido, e determinação para instauração de Inquérito Policial visando a identificação da autoria, materialidade e circunstância por que se dera ação criminosa acontecida, dentre outros pormenores, tendo como conseqüência a elaboração de um minucioso relatório acerca de todas as provas coletadas para sustentação de uma tese de acusação ou até pelo pedido de arquivamento do feito policial à autoridade judiciária.

Ocorre que, diante da avalanche social oriunda de uma sociedade criminógena como a contemporânea, sob várias vertentes (interna e externamente falando), percebe-se uma extrema necessidade de se rever alguns conceitos pontuais correlatos ao ciclo de vida de um Inquérito Policial justamente pela forma por que o Estado tem o adotado e legalmente o descrito, para fins de apuração de crimes acontecido em seu respectivo território, sob pena de o Ente Público ficar completamente para trás (como tem ficado), e o crime formar um corpanzil, cuja fórmula para se reverter o quadro, tão pouco encontrará saída aos desafios do por vir, porém não da forma que se pretendem ou se ousam a fazer.

Na verdade, vive-se uma dualidade no que pertine a importância de flexibilizar a formatação do Procedimento Policial e ao desafio das garantias de direitos insertas na Carta Cidadã de 1988, pois, torna-se até presente o adágio “bom com ele, pior sem ele”, sobretudo quando no afã nas descobertas de crimes, possam-se colocar na sarjeta da irresponsabilidade, inocentes ao serem entregues aos abutres das emoções latentes, sejam estas oriundas da vítima direta, ou da sociedade indiretamente falando. E aí, acredito, reside, dentre vários, o perigo maior, onde relevâncias de garantias constitucionais ali são sustentadas pelas públicas-formas. Que pesem os raciocínios contrários. E se o problema é o culto ao corporativismo, dê-se freio à situação mediante mecanismos legais pré-existentes. É só provocar as ações correlatas.

Ainda, é bem evidente também que, diante do caos social e da disseminação de ousadias dos agentes criminosos modernos nos quatro cantos deste imenso país, mister se faz a adequação, mediante estudos sistêmicos (e não direcionados ou vinculados à mágoas personalizadas por determinados órgãos ou instituições ante a história nefasta a que tiveram vinculação os aparelhos policiais deste pais), para com a mudança nas respostas formais, a exemplo da maneira por que hoje se comporta a apuração sumária dos crimes de menor potencial ofensivo, embora muitos entendam que ali, praticamente não exista Investigação Policial. Lerdo engano, ainda que sumário o procedimento, não elide a Autoridade Policial dos cuidados para com a classificação provisória, realizar diligências no sentido de promover buscas das verdades materiais e imateriais presentes e até mesmo, produzir um pequeno relatório dos trabalhos investigativos realizados; pois Garantias Constitucionais precisam estar presentes e serem constantemente observadas pelos operadores do Direito in concreto, neste caso, a Autoridade Policial que presidirá o feito sumário, já que o “desdito não tem o mesmo efeito do dito”. Eis um das gloriosas importâncias refletidas nas garantias preservadas que terão os autores e/ou vítimas nos mencionados procedimentos policiais sumários. Isto, sem olvidar da possibilidade de os próprios Delegados de Polícia tentarem, antes da confecção do aludido procedimento, uma conciliação prévia em torno dos dispositivos legais recomendativos constantes nos princípios norteadores da Lei 9.099/95.

E mesmo que a sistemática da apuração acima seja simplificada, não deve, a meu ver, a Autoridade Policial prescindir das diligências formais existentes, mesmo que não resultem em qualificação, interrogatório e registros criminais por força de lei, mas que se reduzam o termo às declarações dos que acusam e dos que são acusados (perseguindo a verdade material dos fatos), principalmente quando cidadanias estarão em jogos em seus mais sagrados direitos: a manutenção da integridade moral e da imagem das partes envolvidas. E isto, sem sombra de dúvida, vê-se bastante presente em vários e indevidos preenchimentos de formulários criados em cartório de algumas Delegacias de Polícia, dando a crer que assim atingem com maior eficácia os mandamus contidos na Lei dos Juizados Especiais Criminais. Mais uma vez, profundo engano em “pano de fundo” ou verdadeiro descompromisso com os interesses da Justiça. É o que se pode concluir prima face.

Mesmo que entendam que o simples responder a um inquérito ou processo, constitui o exercício regular do direito de quem seja vítima ou acusado em geral, pois “estariam todos, sob a égide da Ordem Jurídica em vigor, que prevê tal possibilidade, sem conceitos ou preconceitos de máculas”. Entretanto, não é isso que realisticamente ocorre, basta folhearmos os antecedentes criminais na forma superficial oriunda de alguns preconceitos, onde inegavelmente meros acusados, passam por culpados, mediante singelos prejulgamentos do contexto a que estiver inserido, ou seja, mesmo diante da inexistência do “trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, passa-se, praticamente a quilômetro de distância pela culpa formada por antecipação. Sendo, desta feita, cuidados imprescindíveis e decorrentes do próprio Estado de Direito que na fase procedimental policial, deverão ser zeladas pelas Autoridades Policiais todas as garantias constitucionais dos acusados em geral, mediante a presidência dos trabalhos formais correspondentes.

Na verdade, vive-se uma “faca de dois gumes”, por conseguinte por onde correr ter-se-á problema de ordem formal ou material, cuja inobservância (embora alguns doutrinadores entendam que não) possa invalidar a peça informativa policial e daí, grave prejuízo incorrerá a sociedade vítima de sua jornada em vivência criminal, cotidianamente, dentre outras repercussões. E as vítimas que os digam, sobretudo quando o clamor público se destaca pelas vozes de desesperos nos rincões deste continente chamado Brasil, porém, mais do que nunca, mais motivos à preservação da e na manutenção dos princípios garantidores constitucionais em sede dos Inquéritos Policiais, oriundos da existência estrutural dos Estados em que se organizam sob o manto do Direito, é que simbolizarão sua integridade existencial em todos os campos da Ciência Jurídica Criminal em vigência legal e doutrinária no país.

Fala-se na possibilidade de modificar a estrutura formal na confecção do Inquérito Policial ou até extingui-lo para tornar mais ágil e eficiente as respostas policiais aos crimes acontecidos no seio social, e por tabela nas maneiras de se procederem a operacionalidade das investigações que se fizerem necessárias, visando promover e implantar o epitetado “ciclo completo” de Polícia, tendo como cerne, a unificação das atividades de Segurança Pública, onde, os procedimentos administrativos preventivos hoje a cargo das Polícias Militares estaduais, seriam absorvidos pela Polícia Civil ou desta por aquela, dentro de uma simetria, onde, praticamente ambos os papéis seriam desenvolvidos por um único órgão de Segurança Pública. Acreditando, possivelmente, que a tal mudança, faria diminuir vertiginosamente o clima de impunidade criminal no Brasil, por conseguinte “diminuiria o caráter burocrático e lento dos inquéritos policiais”, ante os desafios constantes do Estado para com o enfrentamento da criminalidade urbana organizada, nesses últimos anos.

Mais uma vez a assertiva acima se revela num mero engano e forma desenfreada passional de se ver a problemática do crime, apenas sob perspectiva acadêmica em leituras filosofais, talvez, desvinculada da realidade por que vive a sociedade brasileira e as administrativas falências estruturais das organizacionais policiais no Brasil, já que mudança estrutural na organização Policial Civil no caso in concreto se faz urgente, principalmente no campo da operacionalidade de suas atividades, buscando-se a eficiência e eficácia de suas ações não só nas descobertas dos crimes em si, mas também no efetivo cumprimento dos mandados de prisão para com o fechamento do ciclo das investigações policiais realizadas no bojo dos Procedimentos Policiais produzidos. Isto sem olvidarmos das outras formas de promoção de cidadania, muito comum nos balcões e salas de audiências das Delegacias de Polícia correlatos aos casos inerentes a crimes de menor potencial ofensivo, já exposto no artigo” A ‘outra’ face conciliadora da Autoridade Policial”, publicado no site da ADEPOL/MA.

As perguntas que poderemos fazer diante da calorosa polêmica, serão: o aumento da criminalidade está vinculado a um sentimento de impunidade generalizado tomado corpo no país pelas ineficiências dos órgãos de Segurança Pública como um todo? Ou é pela ausência de políticas públicas com suas respectivas efetivações dentro dos órgãos que compõem o Sistema de Segurança Pública latu sensu diretamente, e indiretamente pela completa falta de integração das políticas públicas ineficazmente levada a efeito pelos demais órgãos públicos e privados que deveriam está presentes nos mais diversos projetos integrativos visando o bem estar e a segurança da população em geral? E ainda, será na total falta de sensibilidade das autoridades públicas no que tange a reservar recursos para fins de implementação das políticas públicas específicas que tem sido fator determinante para com a problemática enfrentada por todos os atores que vivem e convivem com o quadro da criminalidade contemporânea? Ou é a demasiada politização-partidária do problema que estamos assistindo veementemente nesses últimos tempos, cujas “saídas” apresentadas, constituem políticas de governo e não de Estado?

Assim, inegável que mudanças procedimentais serão importantes para com a não manutenção dos procedimentos policiais formalizados nos Inquéritos Criminais aos moldes que vêm sendo produzidos, mas imprescindível se torna uma visão depurada dos desafios para com uma nova formação do ciclo de vida de um inquérito Policial a fim de atender aos desafios típicos do Estado de Direito, onde a presunção de inocência deva ser o norte maior. E os caminhos a serem trilhados pela persecução criminal na fase inquisitorial, sejam postos em evidência, sobretudo mediante fortalecimento das estruturas materiais e imateriais que fazem existir os órgãos de Polícia Judiciária, principalmente através de mudanças operativas de toda a tramitação das investigações cartorárias e de rua, onde, tenha como resultado maior a celeridade (mas sem prejulgamentos ou promoção de injustiças) para com as respostas repressivas de forma coerente, responsável, plausível e digna de respeito às mais genuínas formas de recomendação da dignidade humana, e claro, em primeiras linhas, dos executores das ações investigativas (os policiais em geral), como espelhos maiores, já que o reflexo de suas atividades externadas, estará na sedimentação do imprescindível Estado de Direito por que a República Federativa do Brasil passou efetivamente a adotá-lo, a partir, acredito, da Constituição de 1988.

Fora das observações acima, acredito, só especulação com cunho a culto ao personalismo individual ou de grupos, é que terá como resultado expressivo a completa ineficiência da atividade de Polícia Judiciária espelhada única e exclusivamente em sua mola mestra de existência: os inquéritos policiais com as suas respectivas operações investigativas.


Sebastião Uchôa - Delegado de Policia Civil no Maranhão, Membro da Diretoria Executiva da Associação dos Delegados de Polícia do Maranhão - ADEPOL/MA e atual Diretor Geral da Academia Integrada de Segurança Pública-SSP/MA

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